Aqui não se fala a língua da ocupação

A verdade é que eu não vi o ano mudar. Nenhum deles. Quando chegou 5775, vivia o calendário gregoriano. Quando chegou 2015, o judaico. Enquanto meus amigos no Brasil se empanturravam do peru – ou da alternativa vegana – do dia anterior, no primeiro dia de 2015 acordei cedo, tomei o bonde (ou trem, ou trambia, ou tram, como queiram) em Givat haMivtar em direção ao Portão de Damasco da Cidade Velha de Jerusalém, onde encontraria mais umas cinco ou seis pessoas prontas para visitar uma das poucas cidades que fazem parte da Área A da Cisjordânia, região controlada pela Autoridade Palestina como definido pelos Acordos de Oslo.

O organizador da jornada, um russo alemão de origem judaica, colega meu em um curso na Faculdade de Educação Judaica da Universidade Hebraica, é um dos responsáveis pelo Peace Bus, o ônibus da paz, que, durante a recente guerra em Gaza no verão do ano passado, continuamente carregava manifestantes e militantes entre Israel e a fronteira de Gaza em campanhas pelo cessar-fogo imediato. O fogo cessou, mas o trabalho não. As atividades são quase semanais, buscando resultados a longo prazo de coexistência e cooperação.

Éramos sete pessoas curiosas e desocupadas em uma tarde de quinta-feira. Entre nós, apenas um israelense. Um americano que imigrou para Israel há cinco anos – existe tempo máximo para alguém ser considerado um oleh chadash? É uma das minhas eternas dúvidas. Outros três israelenses que haviam se inscrito não apareceram. Um deles assumiu que tinha medo. A cada entrada de Jericó, como em todas as cidades da Área A, há uma placa do governo israelense informando aos visitantes que cidadãos de Israel são proibidos de entrar, com exceção, claro, dos cidadãos árabe-israelenses. No entanto, como é típico das leis, é possível, apesar de difícil, lançar mão de dispositivos legais e entrar e sair ileso de tais cidades, mesmo se chamando Yael Cohen ou Moshe Levi.

Tomamos um ônibus em direção a Maale Adumim, Área C, onde tomaríamos um táxi coletivo para Jericó. A primeira pessoa que encontramos para além do check-point foi Faisal. Palestino, hoje morador de Hizma, na Área C, fala árabe e hebraico. Bom que em algum momento eu decidi escalar a Torre de Babel e aprender outras línguas. Além de mim, só o americano e o organizador conseguiam se comunicar propriamente com Faisal. Mesmo assim, a vontade de compartilhar sua história pessoal era forte. Pegou o celular e, acessando a página na qual traduziram sua narrativa de vida para o inglês, mostrou para cada um em particular. Mas essa divulgação teve um preço. Sua família hoje se recusa a falar com ele. Em algum momento durante o dia, quando descíamos o Monte das Tentações, ele me confidenciou que é muito malvisto pelos árabes palestinos muçulmanos de sua comunidade, principalmente por causa do modo como cria seus filhos: “sem diferença entre homem e mulher. Direitos iguais aos dois. E isso é difícil no mundo muçulmano.” Os problemas com a comunidade já o atingem de modo mais incisivo. Faisal não trabalha há cerca de um ano. Ninguém o quer empregar. Principalmente depois que souberam de sua visita ao Yad VaShem, o Museu do Holocausto em Jerusalém. Quando soube que eu era latino-americana, não hesitou em me perguntar sobre o custo de vida no Brasil. “Me parece a mesma coisa que em Jerusalém. Pelo menos na minha cidade”, respondi. Então me contou que tem parentes na Venezuela. E que não lhe parece uma má ideia tentar a vida na América Latina. “Isso que eu tenho aqui não é vida. O que meus filhos têm não é vida. Aquele presidente da Venezuela, o Chavo [sic], permitiu a entrada de palestinos. Talvez seja bom”

Esse tema da não-vida tornou a aparecer. Osama, outro dos que conhecemos em Jericó, vê a ocupação da Cisjordânia como um cerco que se fecha mais a cada dia, sufocando seus habitantes. Ele também diz não viver. E conta, com decepção, sobre a influência crescente do Hamas na região. “Eu não concordo com essa violência. Mas a Autoridade Palestina não opta pela violência e o que conseguimos até agora? Mais assentamentos. Em um mês de guerra, o Hamas consegue gerar o caos em Israel. Como eu vou dizer para os meus amigos e vizinhos que os israelenses são bons, que querem viver em paz com a gente? Crianças de dez anos são presas por atirar pedras. Dezenas de palestinos morrem nessa região. Os assentamentos não param, e a lei dos colonos é diferente da lei que se aplica aos palestinos.” Na Área C, sim, ele me disse, “aqui me sinto mais livre. Porque aqui sou igual um israelense. Posso andar, dirigir, sentar no mesmo café que eles. É a mesma coisa.”

A frustração estava estampada nos rostos deles, como se caminhassem à margem da estrada, a ponto de desistir. Mas ainda parece haver um desejo por coexistência. Desejo de vida. Uma vida de verdade. E a coexistência não parece impossível. No centro de Jericó, cidade palestina, Área A, conversávamos em hebraico. “Anachnu lo medabrim basafá shel ha kibush”, me disse Osama, rindo. “Nós não falamos na língua da ocupação”. E continuamos na língua da ocupação, porque por ela iniciamos um diálogo.

Para ler a história de Faisal, clique aqui. Sobre sua visita ao Yad VaShem, aqui.

Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.

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