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Análise: “Noite e Neblina”

Apresentação do filme

O filme Noite e Neblina (Nuit et brouillard), feito no ano 1955, partiu de uma encomenda do Comitê Histórico da Segunda Guerra Mundial a Alain Resnais. Ele aceitou dirigir o filme apenas quando o escritor francês Jean Cayrol passou a colaborar para o projeto. Resnais pensava que apenas alguém com a experiência de ter passado por um campo de concentração poderia dar conta de semelhante trabalho, e Cayrol foi um sobrevivente do campo de Mauthausen.

Cayrol participou da resistência francesa no período de ocupação nazista na França, foi preso e mandado a Mauthausen. Ele escreveu sobre sua experiência no campo, no ano de 1946, em um livro chamado Poèmes de la nuit et brouillard, título que viria a inspirar o nome do filme. Jean Cayrol foi o responsável pelo texto de Noite e Neblina.

A música do filme ficou a cargo de Hanns Eisler, judeu alemão, músico, que fugiu da Alemanha no ano de 1933.  

Noite e Neblina tem apenas 31 minutos de duração. Ele não se propõe a ser um guia compreensivo do Holocausto. Phillip Lopate (2003), em um ensaio sobre o filme, defende que se trata de um anti-documentário, pois não seria possível “documentar” esse tipo de realidade. Nesse sentido, o filme rejeitaria as presunções de neutralidade objetiva do tradicional documentário. Ele seria antes um esforço de análise e compreensão do que ocorreu.

O filme alterna imagens coloridas com imagens em preto e branco. As coloridas representariam o presente, em que a câmera encontra diferentes campos de concentração (que não são identificados) dez anos após o Holocausto. Elas contrastam com as imagens em preto e branco, que consistem em fotos e filmes, retirados de arquivos, relativos ao período em que o horror nazista estava sendo perpetrado.

Imagem de “Noite e Neblina”

Quando Noite e Neblina estava pronto, houve grande dificuldade de fazê-lo passar pela censura francesa. Os censores haviam implicado com imagens que mostram policiais franceses que trabalhavam em um campo na França administrada pelo governo Vichy, que servia de local intermediário para pessoas que foram deportadas para os campos de extermínio. Eles não queriam que fosse mostrado o lado colaboracionista da França durante a Segunda Guerra Mundial. Resnais recusou-se a cortar as imagens e, quando recebeu a ameaça de que tirariam os últimos dez minutos de seu filme, aceitou cobrir os chapéus dos policiais, de modo que eles não fossem identificados como franceses.

Outra polêmica, relacionada à censura, aconteceu no Festival de Cannes, para o qual o filme foi selecionado. Oficiais da embaixada alemã ocidental na França exigiam que o filme fosse retirado da seleção de filmes do festival. Apesar de protestos, Noite e Neblina foi substituído na última hora por outro documentário. Após muita discussão, o filme foi exibido fora da competição.

Noite e Neblina ganhou o Prix Jean Vigo, que é um prêmio francês para jovens cineastas. O filme teve uma recepção muito positiva na França e chegou a ser selecionado pelo Festival de Berlin para uma sessão oficial, no mesmo ano.

Objetivos do trabalho

Neste trabalho procuro fazer uma reflexão sobre o filme Noite e Neblina a partir do tema da representação do Holocausto nas artes. Para isso, uso como referência principal o artigo de Reuven Faingold chamado O Holocausto nas artes: os limites da representação (2009) e o texto escrito por Jean Cayrol, que é falado durante o filme. Para o texto de Jean Cayrol, foram utilizadas tanto a legenda em inglês de uma nova edição do filme (Resnais; 2003), que faz parte da “The criterion collection”, quanto uma tradução feita por Juan Hernandez, disponível em http://cinemaholocausto.wordpress.com/tag/jean-cayrol .

Como procuro demonstrar adiante, a questão dos limites da representação permeia o filme, assim como as implicações éticas de se abordar o tema do Holocausto. Isso aparece não apenas no texto de Jean Cayrol, mas também pelas opções técnicas do filme utilizadas por Alain Resnais.

Escolhi algumas cenas do filme que me pareceram pertinentes, a fim de desenvolver a reflexão acerca da representação do Holocausto nas artes. Não tenho a pretensão de fazer uma análise do filme como um todo.

Primeira cena – início do filme

Noite e Neblina abre com uma imagem de uma paisagem tranqüila, com uma música calma de fundo e com uma voz suave do narrador. Esta voz diz: “Inclusive uma paisagem tranqüila, Inclusive uma pradaria (…), Inclusive uma estrada por onde passam carros, camponeses (…), pode conduzir simplesmente a um campo de concentração” (Cayrol, 1955).

O primeiro elemento estranho àquela paisagem bucólica, e que mostra realmente de qual local se trata, é uma cerca com arame. São citados, então, nomes de inúmeros campos de concentração e as filmagens mostram, imagens de dentro do campo, suas construções. A câmera passa a se mover mais depressa, a voz do narrador torna-se mais intensa e mais ansiosa: “The blood has dried, the tongues have fallen silent” (Resnais; 2003).

Aparentemente há uma quebra nesse ponto. As imagens passam uma idéia de que a câmera está sozinha no campo, que não há mais ninguém além dela. Sensação de silêncio.

O filme se inicia com um distanciamento intencional em relação ao tema que vai abordar. O movimento de distanciamento e aproximação vai acompanhar o filme todo, ficando claramente distinguível pelo uso das imagens coloridas – que representam o presente, distante – e pelo uso das imagens em preto e branco – que representam o passado, o horror de perto.

A idéia de que até em uma paisagem tranqüila e bonita pode se encontrar um campo de concentração carrega uma espécie de alerta. E com isso o filme faz a transição daquele aparente distanciamento para aproximar-se do tema que ele vai abordar.

Fundamental, entretanto, para se abordar o tema, é o silêncio: pois não há palavras para representar o horror do que aconteceu. O silêncio expressa a impossibilidade de comunicar a experiência do Holocausto a todos àqueles que não a viveram (Faingold; 2009). O tema do filme se refere, portanto, a algo que é incomunicável, mas que deve ser comunicado.

Por conta dessa necessidade de se comunicar, Noite e Neblina alerta em relação ao perigo de outro tipo de silêncio: aquele que acompanhou, em grande parte, o Holocausto e que também prosseguiu, de certa forma, no período pós-guerra; não se queria falar sobre isso e não se podia falar sobre isso.

Em busca de quê? 

Após aquela primeira cena do campo de concentração, são mostradas imagens em preto e branco que se referem ao regime nazista: um discurso de Hitler, um desfile do exército nazista. Ao mesmo tempo em que aconteciam aquelas coisas, campos de concentração estavam sendo construídos. Quem os construía? – se questiona a voz do narrador.

Por meio de fotos e de alguns filmes do período, são mostradas imagens das deportações. O filme procura resumidamente, por meio desses documentos, contar o que aconteceu. Não propriamente de modo objetivo, pois a voz do narrador transmite ironia quando fala das pessoas que participaram da construção do campo; transmite angústia quando fala dos trens em que as pessoas embarcavam e das terríveis condições de viagem. Essa parte em preto e branco termina com as imagens de um trem chegando na “noite e neblina”.

As cenas tornam-se coloridas novamente: são imagens do campo de concentração no presente. O narrador diz: “Hoje, sobre o mesmo caminho, é dia e brilha o sol. O percorremos lentamente, em busca de quê?” (Cayrol; 1955).

É possível observar mais uma vez o contraste entre os momentos: a luz do dia do presente, com a noite e neblina do passado; a aproximação e subitamente o distanciamento.

Lopate (2003) chama a atenção que há uma busca de uma conexão entre local – os campos em que estavam feitas as filmagens, dez anos depois – e história; entre arquitetura e morte. A câmera parece encontrar nos campos apenas uma paisagem, uma arquitetura, mas sua busca é atingir o que está por trás de tudo aquilo, o que se esconde na história daquele local.

Para além de uma mera dificuldade de uma representação objetiva de um fato histórico, uma das especificidades na representação do Holocausto, como aponta Faingold (2009), é a extrema dificuldade na correlação entre esse fato histórico singular e sua expressão diante do terror e da angústia. Segundo o autor, “os limites da representação do Holocausto são, também, os limites da memória do horror”.

Quando as cenas em preto e branco voltam, são apresentadas imagens de dentro do campo de concentração. A voz do narrador diz: “Primeiro olhar sobre o campo” e, simultaneamente, aparece a imagem de um rosto – possivelmente algum prisioneiro – com uma feição extremamente assustada.

O horror expressado no rosto anuncia as imagens que estão por vir, que buscam retratar as pessoas no campo de concentração.

Limites da representação      

Outra cena da filmagem em cores, em que está sendo retratado o alojamento, as camas, de um campo de concentração, o narrador questiona: “What hope do we have of truly capturing this reality? (…) No description, no image can reveal their true dimension: endless, uninterrupted fear”. E, depois, parece concluir: “We can but show you the outer shell, the surface” (Resnais; 2003).

O texto, escrito por Jean Cayrol, expressa constantemente a limitação da própria obra. Apesar de uma busca por capturar a realidade dos campos de concentração, as imagens mostram apenas a superfície. A dimensão verdadeira de quem realmente viveu aquilo não é representável por nenhuma imagem.

Faingold (2009) aponta que o debate em torno da (im)possibilidade de representação do Holocausto faz parte da própria memória do Holocausto. O paradoxo consiste que há um dever ético de se lembrar o que aconteceu, e ao mesmo tempo há uma impossibilidade de representá-lo. Outra questão importante é que não haveria um elo entre a representação do Holocausto e a experiência do Holocausto. Existe aí um abismo que não deve ser atravessado.

Educação para que Auschwitz não se repita

Lopate (2003) aponta que Noite e Neblina tem um uma grande importância como filme anti-guerra e anti-violência. Seria apenas recordando, olhando para trás de forma reflexiva, buscando compreender o desastre que aconteceu, que seria possível prevenir atrocidades semelhantes.

Isso fica bastante explícito na última fala do narrador do filme, que acontece após cenas dos julgamentos de nazistas em que eles diziam que não eram os responsáveis:

Who among us keeps watch from this strange watchtower to warn of the arrival of our new executioners? Are their faces really different from our own? (…) We pretend to take hope again as the image recedes into the past, as if we were cured once and for all of the scourge of the camps. We pretend it all happened only once at a given time and place. We turn a blind eye to what surround us and a deaf ear to humanity’s never-ending cry (Resnais; 1955).

Uma preocupação que parece estar presente aí, seguindo a linha de Adorno (1986), é de uma educação para que Auschwitz não se repita. Foram pessoas como nós os carrascos e foram pessoas como nós as vítimas. Isso aconteceu uma vez e pode, caso não dermos a devida atenção ao que se passou, se repetir mais uma vez.

É interessante destacar, porém, que o filme em nenhum momento identifica quais os campos de concentração que estão sendo filmados, nem quem são as pessoas que aparecem nas imagens. Não há menção ao anti-semitismo imbricado na ideologia nazista, e nem que a maioria das vítimas era composta por judeus. Noite e Neblina transmite uma espécie de universalização da experiência das vítimas e da identidade dos perpetradores. Isso o levou a ser criticado, por exemplo, pelo cineasta brasileiro-israelense David Perlov, que chama a atenção que a universalização seria uma forma de diluir o que aconteceu. O Holocausto tem uma marca judaica que não pode ser ignorada.

Referências

ADORNO, T. A educação após Aushwitz. In: Gabriel Cohn (org): Theodor Adorno- Sociologia. São Paulo: Ática, 1986.

CAYROL, J. Texto do poeta Jean Cayrol, para o filme de Alain Resnais, com tradução do poeta Juan Hernandez. Disponível em: http://cinemaholocausto.wordpress.com/tag/jean-cayrol .

FAINGOLD, R. Holocausto nas artes: os limites da representação. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG – Volume 1, n.5 – outubro, 2009.

LOPATE, P. Night and fog. In: RESNAIS, A. (1955) Night na Fog. [filme – curta-metragem] –  “Special Features”. U.S.A., Argos Films, “The Criterion Collection”, 2003. DVD, 31 min. Color and Black and White.

RESNAIS, A. (1955) Night na Fog. [filme – curta-metragem] Direção de Alain Resnais, texto de Jean Cayrol. U.S.A., Argos Films, “The Criterion Collection”, 2003. DVD, 31 min. Color and Black & White.

Esse trabalho foi originalmente escrito como parte da avaliação da disciplina de graduação “Cultura do povo judeu nos tempos modernos I” ministrada em 2011 pela professora Marta Topel na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Veja o filme na íntegra

Parte 1

Parte 2

Parte 3

Brothers

Quando o Estado de Israel foi criado, Ben Gurion permitiu ao pequeno grupo de estudantes de Yeshivá, cerca de 400, que não servissem ao Exército. Tal episódio ficou conhecido como “Torato Omanut”, ou “A Torá é a sua arte” – foi concedido ao grupo o direito de se dedicar exclusivamente ao estudo da Torá. A partir de 1977, o Likud sobe ao poder e o número de estudantes de yeshivot que não vão ao exército só cresce.

Esse direito permaneceu até 2002, quando se criou a chamada “Lei Tal”, oficializando a dispensa da prestação do serviço militar aos que dedicam tempo integral ao estudo da Torá. A lei tinha 5 anos de duração, mas acabou por ser postergada por mais 5 anos e no início de agosto venceu. Não houve mais prorrogação pois foi dada como inconstitucional pela Knesset.

Esse é ponto central no filme “Brothers”, do diretor israelense Igaal Niddam. Todas as discussões do filme se baseiam nos ortodoxos servirem ou não no exército.

No filme, dois irmãos judeus separados há muito tempo se reencontram. Para surpresa de ambos, um deles é um chalutz do kibutz, trabalha no campo, ajudou a construir a terra e é  contrário ideologicamente aos ortodoxos; o outro irmão é ultra-ortodoxo e cumpridor das leis da Torá.

O filme gira em torno das discussões entre eles e da discussão do tribunal. O irmão ortodoxo é advogado e vai até Israel para ajudar na causa de uma Yeshivá que é obrigada a mandar os estudantes ao exército contra sua vontade.

Debates muitos interessantes são realizados no tribunal e na casa do irmão. Eles não se agüentam e não entendem como podem pensar tão diferente.

Não quero estragar o filme para quem não viu, apenas trazer alguns questionamentos que no filme aparecem. Será que por ser um estado judeu e democrático não se deve tratar todo cidadão da mesma maneira? Por que o tribunal rabínico deve decidir quem é judeu e quem não é? Para ir morar em Israel, segundo a Lei do Retorno, é necessário que haja um judeu no mínimo na terceira geração da sua família, entretanto para poder se casar é preciso ser filho de mãe judia. Será que isso é certo? É certo colocar apenas comida kasher para as pessoas do exército? É certo não ter ônibus no shabat? Até quando o estado tem que ser democrático? Tem como o estado ser judeu e democrático?

São diversos questionamentos que podemos discutir. Você já pensou nisso?