O “Nakba Day”

O dia 15 de Maio, comemorado por israelenses e judeus do mundo inteiro como o aniversário da Declaração de Independência do Estado de Israel no calendário solar, é também lembrado por palestinos e simpatizantes de sua causa como o “Yawm an-Nakba”, o “Dia da Catástrofe”, modo como a memória coletiva palestina marca o deslocamento forçado de aproximadamente 750 mil palestinos e a destruição de mais de 530 vilas no período da Guerra de Independência de Israel, em 1947-1949. Neste último Yawm an-Nakba, a Educational Network For Human Rights in Palestine/Israel (FFIPP-Brasil), com a qual viajei para Israel e para a Cisjordânia nas últimas férias, promoveu uma mesa de debates na PUC-SP para marcar a data.

Rafael V. Levy, que já trabalhou voluntariamente em campos de refugiados palestinos no Líbano em Julho de 2013, e através da FFIPP no campo de Aida, em Belém, na Cisjordânia, em Janeiro de 2014, introduziu seu discurso com uma fala sobre suas origens. Filho de pai judeu, Levy considera que foi criado dentro da narrativa sionista tradicional, segundo a qual os diversos regimes árabes que declararam guerra a Israel quando de sua criação, em 1948, teriam dito à população palestina para “deixarem suas terras temporariamente, e, quando acabarmos de jogar os judeus ao mar, que retornem”.

Sob esta narrativa incompleta, fica implícito que foram os governos da Síria, Líbano, Jordânia e outros que, derrotados por Israel, não teriam deixado os refugiados voltarem; ou então seriam os próprios palestinos que, por algum motivo oculto, não desejariam retornar. Não fica claro. Esta versão da história não pretende iluminar o passado ou explicar o presente, mas sim eximir Israel de qualquer culpa nos dois. Na verdade, o êxodo dos palestinos começou antes da Declaração de Independência e da intervenção dos vizinhos árabes, já em 1947, com o anúncio do fim iminente do Mandato Britânico e o estouro de uma guerra civil. As milícias sionistas Haganah e Irgun não só expulsaram forçosamente os vilarejos, como também fizeram alguns massacres em pontos estratégicos, para “liberar” áreas e espantar a população de vilarejos circundantes. Ao final, incluindo refugiados e Pessoas Internamente Deslocadas (IDP), cerca de 85% da população palestina no território acordado a Israel na trégua de 1949 foi afetada pelas expulsões.

Em seguida, Levy falou sobre a situação no campo de Aida, e sobre a atuação da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA). A UNRWA opera independente da ACNUR, agência responsável pelas outras crises de refugiados mundo afora. Aos 750 mil refugiados iniciais de 1947-49 foi negada a cidadania nos novos países, enquanto o status de refugiado foi legado aos descendentes nascidos no exílio. Hoje, mais de quatro milhões de pessoas são

reconhecidas como refugiados palestinos pela UNRWA. Além destes, aproximadamente outros cinco milhões seriam refugiados não reconhecidos. Em 1967, com a Guerra dos Seis Dias, Israel passou a ter controle sobre os refugiados nos territórios da Cisjordânia, Gaza, Golan e Sinai.

Foi mostrado à plateia um vídeo da organização Badil (“alternativa”, em árabe) feito no campo de Aida, no qual se entrevista o professor Amjad Qassis, que fala do processo contínuo da Nakba, até os dias atuais (a chamada “ongoing Nakba”); “Israel impede o retorno dos refugiados ao mesmo tempo em cria mais refugiados” diz o professor a certa altura. Aida é ladeado pelo muro israelense de separação e, apesar de estar localizado dentro de Belém, e ser, portanto, Área A, sob controle completo da Autoridade Palestina, ainda é alvo de incursões regulares do exército, muitas vezes em resposta a crianças palestinas que quase diariamente atiram pedras contra as torres de vigia do muro. Durante a entrevista a céu aberto de Mohammed Al-Azza, morador do campo, é possível escutar sons de tiros ao fundo.

Em seguida falou o professor Reginaldo Nasser, coordenador do curso de Relações Internacionais da PUC-SP. Nasser achou interessante que Levy tivesse decidido introduzir sua fala contando sobre suas origens, e a partir daí começou a tecer uma crítica à visão maniqueísta com que muitas vezes são vistos os conflitos no Oriente Médio; deu o exemplo da fala do diplomata Rubens Ricupero, que via a questão Israel-Palestina como um “conflito religioso”. Segundo Nasser, esta seria uma ideia errônea de que tais conflitos são “exóticos, distantes”, como se as questões que hoje afetam diariamente a vida de israelenses e palestinos tivessem alguma relação direta com os tempos bíblicos e não fossem fruto de projetos nacionais e interesses econômicos; como algo “quase genético”. Na verdade, a questão da Palestina é relacionável com outros contextos mundo afora, como a África do Sul, a Irlanda do Norte e a periferia de São Paulo.

Nasser também chamou atenção para pontos positivos da sociedade israelense, que estaria passando por uma “transformação social” graças à ação de ONGs israelenses de direitos humanos, como B’Tselem, responsável por documentar e divulgar para a sociedade israelense as violações de recorrentes nos Territórios Ocupados e zelar pelo cumprimento à lei internacional por parte de Israel; e Shovrim Shtikah (Breaking the Silence), que reúne veteranos do exército israelense que serviram na Cisjordânia desde a Segunda Intifada, prestando testemunhos e expondo ao público israelense o que é feito em nome de sua “segurança”, além de promover passeios de turismo político para denunciar a ocupação em Hebron. Estes grupos, diz Nasser, têm sofrido algum grau de pressão e restrições por parte do governo israelense, como na proposta de lei no Knesset que pretende listar ONGs que recebem fundos do exterior como “agentes estrangeiros”.

Seguiu a fala de Lenora Bruhn, que estagiou pela FFIPP no Vale do Jordão, região desértica de Área C na fronteira com a Jordânia, e, portanto, considerada território estratégico para Israel. As pequenas vilas palestinas, muitas vezes compostas por não mais que algumas tendas improvisadas, lidam com uma escassez crônica de água, que contrasta com a abundância verificada nos assentamentos logo ao lado, obra da política de preços discriminatória praticada pela empresa hídrica israelense Mekorot. Lenora explicou que, pela lei internacional, Israel, enquanto potência ocupante, deve zelar pelo bem-estar da população civil dos Territórios Ocupados, o que claramente não ocorre. A transferência de população civil israelense para a Cisjordânia, para assentamentos como Roi e Bekaot, também constitui uma violação das obrigações de Israel como agressor.

Atualmente, apenas 1% da terra no Vale do Jordão é destinada ao desenvolvimento; enquanto isso, 95% das aplicações feitas ao comando militar pela população palestina local para poder realizar novas construções são rejeitadas. Como consequência, a grande maioria das construções palestinas é considerada ‘ilegal’ pela lei militar israelense, e está sujeita a demolições regulares, como de fato ocorre com casas, tendas, escolas, centros comunitários e estabelecimentos comerciais no Vale. O efeito disso é a impossibilidade de uma vida normal e do pleno desenvolvimento pessoa e coletivo no longo prazo.

Por fim, falou a professora Mariane Gennari, que estagiou na Baladna, organização de sociedade civil que atua na comunidade palestina de Haifa. Mariane contou sobre os chamados “palestinos de ’48” (também conhecidos como “árabes-israelenses” ou “palestinos-israelenses”, todos termos com diferentes conotações políticas), descendentes da população palestina que não foi obrigada a se deslocar, ou de IDPs. Os palestinos-israelenses viveram sob lei militar até 1966, e não raro enfrentaram expulsões subsequentes à guerra de 1948, estendendo-se até o final da década de 1950. No Dia da Terra (“Yawm al-Ard”, 30 de Março) de 1976, muitos palestinos-israelenses decidiram demonstrar a memória de sua tragédia coletiva através de uma greve geral nas principais cidades palestinas da Galileia, como Nazaré, Sakhnin e Shefa-Amr. Esta ação de desobediência civil por parte de cidadãos israelenses foi reprimida pelo exército, que matou seis grevistas.

A educação dos palestinos-israelenses é ministrada em escolas públicas separadas, nas quais estes aprendem o hebraico e sobre a história judaica e de Israel, mas onde o conhecimento sobre história e cultura árabe e palestina é escasso. Para Mariane, a lógica por trás desse sistema é de retirar-lhes a identidade palestina e os inserir marginalmente na cultura israelense. A ação de organizações como a Baladna está focada em promover entre a juventude sua cultura e tradições diferenciadas, e impedir sua assimilação completa na sociedade israelense.

Gennari falou sobre as celebrações simbólicas feitas na vila cristã de Iqrit, cujos habitantes foram expulsos e suas casas bombardeadas no Natal de 1951, muito depois

da Guerra de Independência. Todos os anos, jovens descendentes de IDPs de Iqrit, vindos de cidades como Haifa, Nazaré e outras, se encontram nos destroços da vila para acampar durante alguns dias e renovar a memória da expulsão e a esperança de retorno. Apesar de muitos morarem a apenas alguns quilômetros de Iqrit, não lhes é permitido retornar e reconstruir as casas de seus antepassados. Em sua estada com os jovens, Mariane também comentou a situação dos palestinos cristãos, que não estão isentos do serviço militar, mesmo que muitos o recusem por razões abertamente políticas.

A questão dos refugiados é talvez a mais polêmica de todas envolvendo o conflito Israel-Palestina, porque se encontra na gênese da própria criação de Israel. Discutir a questão dos refugiados e seu direito de retorno, estipulado na Resolução 194 da ONU, significa ir além do debate sobre a ocupação da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental de 1967 e questionar – segundo muitos, deslegitimar – as bases do Estado judaico. Em todas as rodadas de negociações de paz realizadas entre Israel e a Autoridade Palestina até hoje, os refugiados estavam fora de discussão, dado o consenso quase geral de que o seu retorno imediato e em massa, além de impensável em termos de infraestrutura e logística, resultaria no fim da maioria judaica. Este cenário é inaceitável para sionistas, sejam eles liberais ou não, e muitos defendem soluções ‘alternativas’ à questão, como compensações financeiras aos descendentes de refugiados, e/ou sua integração total como cidadãos de pleno direito nos países em que vivem (o que lhes foi muitas vezes negado pelos governos destes países). Os defensores do retorno alegam que isto ainda assim não atenderia às estipulações da Resolução 194, e que o direito a voltar às terras perdidas em 1947-49 é inalienável e indispensável enquanto parte de uma solução justa e baseada nos direitos dos povos.

Uma série de problemáticas é depreendida desta discussão inicial (“Os refugiados devem ter o direito a retornar?”), todas as quais necessitarão, no contexto de uma eventual solução, de respostas definitivas. Se sim: o retorno deve ser feito de maneira gradual? Como evitar um colapso estrutural ao assentar aproximadamente cinco milhões de pessoas num território cuja população atual é de cerca de oito milhões? Como evitar que surjam confrontos sectários? Como resolver disputas territoriais privadas? Como integrar os refugiados e a população judaica? Como será feita a transformação política em direção a um único Estado que cubra todo o território de Israel, Cisjordânia e Gaza, e como garantir que este Estado seja democrático? Se não: como compensar os refugiados e seus descendentes? Como derrubar as muralhas dos campos e garantir que aqueles se tornem jordanianos, sírios, libaneses e palestinos de pleno direito? Como levar adiante a solução de dois Estados?

A questão fundamental que o problema dos refugiados postula para o conflito Israel-Palestina (e inúmeros outros conflitos mundo afora) é: Qual é a melhor concepção a ter em vista quando pensando e trabalhando a resolução do conflito Israel-Palestina? A concepção da autonomia e independência política de cada comunidade em Estados-

Nação soberanos, com respeito às suas identidades socioculturais coletivas e a seu desenvolvimento endógeno? Ou a concepção de integração e assimilação social e política das comunidades em um único Estado binacional, por mais distante e impraticável que isso pareça? E seria possível uma via média entre estas duas visões?

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2 Respostas para “O “Nakba Day””

  1. Sérgio Storch
    19/06/2014 em 14:01 #

    Parabéns, Raphael. Para alguns dos teus questionamentos, este artigo de uma israelense-canadense traz alguns insights, especialmente a partir da história do Canadá.

    I am a Palestinian Jew, or at least I will be | +972 Magazine – http://bit.ly/1pn3XMi

    É a primeira vez que aceito um argumento pelo descolamento do componente sionista da minha identidade judaica, por ser a primeira que trata de forma compreensiva o reconhecimento da legitimidade e dignidade da escolha que judeus de outras gerações fizeram pelo sionismo, nos contextos históricos em que essa foi a coisa certa a fazer, face ao fechamento das portas da imigração nos países do Ocidente diante da tragédia judaica nos pogroms da Rússia czarista e, pouco depois, do genocídio.

    As críticas ao sionismo que predominam são atemporais, e condenam de forma injusta os judeus que não tiveram outra opção digna a não ser lutar por um lar nacional. Entendi, ao ler esse artigo, que a dificuldade que tenho em me desapegar do sionismo é essa distinção fina e aparentemente contraditória, entre o sionismo como causa legítima no passado, cuja memória tenho o dever ético de reverenciar e transmitir a meus filhos e netos, e o sionismo, mesmo o de esquerda, que no contexto atual, tem como corolário o etnocentrismo e a discriminação de direitos de outros povos que coexistem em Israel/Palestina. Decididamente, sou a favor da igualdade de direitos, e acho que é o único denominador comum que pode legitimar, no longo prazo, a solidariedade a Israel por parte de cidadãos mundiais que defendem a justiça e a paz.

    Raphael, fico muito feliz em ver jovens da geração dos meus filhos com tanta clareza nesta trincheira.

  2. Geraldo Coen
    19/06/2014 em 15:42 #

    Realmente narrativa incompleta. Continua incompleta. Falta falar, no mínimo por uma questão de justiça, dos refugiados judeus de países árabes, aproximadamente 900.000, 40% dos quais se refugiaram em Israel, o resto em outros países, acabando com a presença secular de judeus em países árabes. Falta falar da UNRWA e de seu papel na perpetuação da condição de refugiados dos palestinos, que continua até hoje. Falta falar do papel da Jordania, país de maioria palestina. Do papel de todos os países árabes que entraram em guerra contra Israel e que usaram e usam até hoje os palestinos como peças em negociações ou pretexto para agressões. Falta, e é o mais importante, contextualizar, entender como era a região toda, o mandato britanico, a ordenação do Império Otomano (vide Iraque hoje para ter uma idéia da complexidade).

    Falta principalmente entender a história dos palestinos, como se formou sua identidade, quem são seus líderes, como se desenvolveu a situação terrivel deles, a economia palestina (ou falta de), os vários grupos de interêsse e os países que os apoiam.

    Sem isso tudo, fica uma impressão de Israel x palestinos, maus x bons. Pobre e reducionista.

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