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Yom Hashoá: um dia para relembrarmos o passado e olharmos para o futuro

Há uma anedota que consiste num diálogo entre um turista passeando por Israel e um judeu israelense.

O turista pergunta ao judeu israelense:

- Por que você veio para este país?

O judeu israelense responde: 

- Vim para cá para esquecer.

A resposta provoca curiosidade, e o turista volta a perguntar:

- Esquecer o quê?

E o judeu responde:

- Eu esqueci.

No calendário judaico, o dia 27 de Nissan é conhecido como Yom Hashoá, o Dia da Lembrança do Holocausto. Neste ano de 2013, pelo calendário gregoriano, recordamos as vítimas do Holocausto na noite de 7 de abril e durante todo o dia 8.

Lembro-me de minha primeira visita ao Yad Vashem, o Museu do Holocausto, em Israel, com apenas treze anos de idade. Naquela ocasião, tive o privilégio de ser acompanhado por um guia atencioso e paciente. Após passar cerca de quatro horas observando fotografias, vídeos e vários objetos assombradores e aterrorizantes que compunham o seu acervo, enfim deparei-me com uma imagem bonita. Essa  imagem, que observava ao final do percurso, não era nenhum objeto, quadro ou fotografia. Era ao vivo e a cores: a bela paisagem da cidade de Jerusalém.

Vista para a cidade de Jerusalém, Museu Yad Vashem

Ao mesmo tempo que observava aquela bela paisagem, após um dia exaustivo, o guia fazia o seu último comentário, em forma de pergunta: “Por que há essa linda paisagem de Jerusalém localizada exatamente no final do museu? Seria uma forma de nos vingarmos do Holocausto? Uma maneira de dizer ao mundo que hoje temos um Estado Judeu e eis aqui a nossa vingança?”. O guia continuou, dizendo: “Hoje estamos vivos, progredimos, temos o Estado de Israel, porém, isso não deve ser interpretado como vingança”.

Três anos após a minha primeira visita ao Yad Vashem, participei da Marcha da Vida, uma viagem de duas semanas que pode ser dividida em duas etapas: na primeira, na Polônia, conhecemos a vida judaica antes do Holocausto, as sinagogas, os Shtetls, e o drama dos judeus durante os anos de 1940, com visitas aos campos de concentração e  de extermínio; na segunda etapa, em Israel, entramos em contato com as maravilhas de um país com menos de setenta anos de criação. Ao final da viagem, fica bastante claro o contraste entre esses dois momentos da história judaica no século 20, isto é, o conceito de Meshoá L’tkumá - da destruição ao renascimento.

Recordo-me que logo no início da Marcha da Vida, o guia ordenou nosso grupo a não caminhar de cabeça baixa. Ao longo de toda a viagem, devíamos andar sempre com a cabeça erguida, principalmente ao visitarmos os campos de concentração e de extermínio. Andar cabisbaixo não nos era permitido.

Recordo-me ainda que durante a visita a Majdanek, o guia nos ofereceu garrafas de Coca-Cola. Em meus pensamentos, aquilo parecia absurdo. Não concebia a ideia de me refrescar com um refrigerante num local que havia abrigado um campo de concentração. É verdade que estávamos em julho, em pleno verão polonês, e o clima era, de fato, quente. Porém, a visita a Majdanek transformava o clima quente em frio. Além disso, um simples gole de Coca-Cola parecia um ato de desrespeito às vítimas do Holocausto. Minha revolta durou poucos segundos. Compreendi imediatamente quando o guia explicou seus motivos: antes de beber o refrigerante, deveríamos pronunciar, em voz alta, a Brachá de Shehacol, benção que, de acordo com a lei judaica, deve ser feita antes da ingestão de qualquer bebida, como forma de reconhecimento a D’us. O guia enfatizou, em sua explicação, que durante o Holocausto, em Majdanek, um judeu sequer, em nenhuma hipótese, poderia pronunciar a Brachá de Shehacol em voz alta e saciar sua sede. Hoje, porém, nós podemos. Portanto, beber o refrigerante não era um ato de desrespeito, mas uma maneira de perceber a mudança entre o presente e o passado recente.

Confesso que mesmo concordando com o guia, não foi uma tarefa fácil andar de cabeça erguida durante toda a viagem. Havia momentos em que os sentimentos eram tão fortes que abaixar a cabeça e se deixar abater era quase inevitável. De modo similar, também não foi fácil beber aquela garrafa de Coca-Cola em Majdanek, mesmo sabendo que faço parte de uma geração privilegiada, que tenho de viver o presente, e não o passado. De alguma forma, a visita a Majdanek  transportou-me ao passado, e o passado parecia tão real que, em certos momentos, esquecia-me do presente, sentia-me preso ao passado, sentia que não podia andar de cabeça erguida ou beber um refrigerante. Frequentemente, era necessário que o guia me alertasse: “levante a cabeça”.
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Já se passaram pouco mais de cinco anos desde minha viagem. Hoje, percebo que durante as duas semanas da Marcha da Vida aprendi bastante, não apenas em conhecimento, mas também em modos de agir e se comportar. Um dos ensinamentos que assimilei foi o de deixarmos o passado em seu devido lugar, não permitindo que ele se transforme no presente, muito menos no futuro. Para viver o presente e pensar no futuro, temos que nos desapegar do passado.
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É a partir desse ensinamento que interpreto a paisagem da cidade de Jerusalém ao final do Yad Vashem, que concordo com o dever de andar de cabeça erguida durante a Marcha da Vida, que concebo a ideia de beber um refrigerante em Majdanek e que entendo o motivo da viagem terminar com uma semana em Israel.
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Porém, ao viver o presente e pensar no futuro, devemos tomar cuidado para não cometermos o erro da anedota, isto é, “esquecermos o que esquecemos”. Embora não devamos ficar presos ao passado, não podemos esquecê-lo por completo. Devemos esquecer apenas ao ponto de não nos tornarmos reféns, para que possamos viver o presente e agirmos por um futuro diferente. Por fim, devemos lembrar e relembrar para não esquecermos.
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Hoje, ao lembrar os horrores do passado, podemos encontrar consolo em saber que há um progresso em curso, erguendo nossas cabeças e agindo no esforço de transformar “L’olam lo od”, Never Again”, “Nunca Mais”  em muito mais do que mero slogan.
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