Iara Haasz

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Iara Haasz, nasceu em Israel, é pedagoga formada pela Universidade de São Paulo e atua como educadora em escolas e instituições com crianças e jovens há 14 anos. Participa da rede mundial de educação democrática na Escola Politeia, em São Paulo, e é coordenadora da FFIPP-Brasil.

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Welcome to Ghost Town

Em Hebron (cidade no sul da Cisjordânia), fizemos um tour pela rua paralela à rua principal, a Al-Shuhada Street, na região do que costumava ser o maior Suq (feira) da Cisjordânia, Palestina, aqui algumas lojas ainda estavam abertas, mas tudo bem vazio. Um frio do cão e chuva gelada acompanharam o grupo neste dia. O guia, natural de Hebron, nos contava como foram chegando os colonos e expulsando os moradores de suas casas e impossibilitando que circulassem por partes da cidade, o que fizera com que varias famílias tivessem que abrir passagem pelo teto de suas casas para poder sair. Mostrou alguns dos pontos onde a casa de baixo é de uma família palestina e o andar de cima virou um assentamento ilegal ocupado por judeus israelenses. Na rua, o que separa as duas é uma tela colocada por alguma das equipes de ajuda humanitária (ajuda?? humanitária???) para proteger os moradores da cidade das pedras e de outros objetos atirados pelos colonos. No trecho onde paramos para ouvir essa explicação, tinham atirado um bloco de concreto quase do meu tamanho, o bloco chegou a rasgar a tela de proteção, mas não caiu no solo. Ficou ali entalado! Um símbolo que gritava: não ache que é tranquilo circular por aqui, vá embora! Mas até aí, o bloco é quase uma cócega perto da quantidade de símbolos, placas, leis e etc. que dizem isso a população local, não só em Hebron… Em todo território da Autoridade Palestina e dentro de Israel.

Tela protetora sobre rua em H2 (Plínio Zuni).

Chegamos a entrada da Shuhada Street, duas componentes do grupo não puderam entrar, pois estavam sem seus passaportes e o nosso guia se despediu de nós, pois a ele é proibido entrar ali por ser palestino. Nós como um grupo de internacionais, como são conhecidos por aqui os estrangeiros, temos a chance de circular dentro desta área da cidade. Hebron esta dividida em dois, entre H1 e H2 conforme aparece no mapa abaixo.

Mapa das áreas H1 e H2 em Hebron (OCHA/UN).

Toda a área de H2 tem acesso restringido por checkpoints que controlam a entrada e saída. Para entrar em H2 passamos por um checkpoint, fiquei por última na fila para assegurar que todo o grupo entrasse junto, pois mesmo antes de entrar já estava uma sensação tensa, vários pontos de observação de soldados do alto por todo o caminho que beirou a divisão de H1 e H2. Acho que foi o último momento deste tour que consegui me preocupar com ser coordenadora do grupo. Entramos em H2 do lado da Mesquita de Ibrahim, conhecida para os judeus como Mearat Hamachpela, lugar onde supostamente estão enterrados os patriarcas e as matriarcas. Decidimos entrar rapidamente na mesquita. Logo antes da entrada um dos coordenadores explica que os colonos tem uma entrada separada para eles e estão sempre acompanhados de soldados empunhando armas – assim que ele termina a frase vemos dois homens, facilmente reconhecíveis como judeus ortodoxos, por suas roupas, saindo da mesquita acompanhados por um soldado com a arma na mão. O coordenador segue explicando que para entrar na mesquita se pede que tirem os sapatos e que os colonos se negam a fazê-lo e por isso tiveram que arranjar tapetes que colocam quando os colonos vem visitar as tumbas. Tivemos que passar um controle de segurança, mais um checkpoint, para entrar na mesquita pela entrada dos muçulmanos controlado por soldados israelenses. A entrada dos colonos é livre.

Dentro da Mesquita o silencio me impactou, mas as tumbas em si só me deixaram frustrada. Se por um lado racional posso compreender que crenças e símbolos concretos são importantes para pessoas religiosas, por outro me dá muita raiva pensar que caixas de concreto servem de desculpa para atrocidades!

Um dos coordenadores nos mostrou as marcas das balas deixadas por Baruch Goldstein, um colono que abriu fogo dentro da mesquita em 1994, que feriu 100 e matou 29 pessoas.

Saímos da mesquita e o frio apertou. A rua vazia. Começamos a caminhar na direção da Shuhada Street,e algumas lojas abertas me chamaram a atenção. Explicam me que os donos das lojas não podem atravessar esta rua, tem um posto de soldados do outro lado da rua… não entendi. Nesta rua, palestinos andam de um lado, o lado sem calçada, sem acabamento e estreito, enquanto os judeus andam do outro. Meu corpo todo se enrijeceu, parecia que alguém tinha colocado um bloco de concreto no meu estômago! Duas meninas palestinas com suas mochilas vinham andando do seu lado da rua. Eu pensava em minha vó e em judeus andando no gueto.

Seguimos em frente e o bloco não me deixou. Parecia que eu inteira havia virado concreto, um mal estar que não tenho referência, não sei se alguma vez senti isso antes, eu me arrastava para seguir. Entramos na famosa Shuhada Street, uma das rua em que os palestinos são proibidos de circular – todas as lojas fechadas, nos apartamentos em cima das lojas, vazios também, alguns resquícios que uma resistência anterior deixou.

Cartaz pendurado em varanda na Shuhada Street (Plínio Zuni).

Do outro lado da rua, o maior cemitério da cidade por onde as famílias tem que dar a volta por fora de H2 para poderem visitar os seus mortos. No cemitério, vimos dois meninos que vinham nos acompanhando durante todo o tour tentando vender umas lembrancinhas, eu tinha percebido que tinham sumido, achei que haviam desistido… Não! eles não podiam passar com a gente pelo checkpoint, gritavam do cemitério:

Welcome to Ghost Town!

Nesse ponto eu já não conseguia ouvir mais nada, estava com dificuldade de respirar, parecia que o ar estava ralo.
Passamos em frente a uma série de painéis coloridos onde os colonos explicam por que eles acham que tem um direito histórico para fazer o que estão fazendo ali. Não consegui ler…

Ainda queriam mostrar as ruas em que só os palestinos podem andar e a escada que tiveram que construir para as crianças poderem chegar na escola, pois a rua principal é proibida para elas.

Eu queria sair dali! Gritar! Chorar!

Mas fui com o grupo me arrastando, subimos as escadas e finalmente os meninos que queriam nos vender coisas puderam se juntar ao grupo, nos mostraram a famosa pichação “Gas the Arabs” e demos a volta. Neste momento, mesmo se o grupo não tivesse se direcionando para sair de H2, eu teria saído sozinha…

Mais uma informação antes de passar por um checkpoint que tem uma placa proibindo judeus de passarem, não colonos, não israelenses, mas judeus! Nesta placa, mais uma evidencia de quão absurdo este sistema político é!

E pra completar: comentam que é por este checkpoint, o que estávamos prestes a cruzar para sair de H2, que as crianças entram para irem à escola e que há alguns anos conseguiram um acordo para que não revistassem suas mochilas. Ainda assim, este acordo não é respeitado e os soldados revistam até as mochilas das crianças de cinco anos.

Sobre Hebron:

Hebron foi dividida em H1 e H2 em 1997 – H1 está sob administração da autoridade Palestina e H2 sob controle militar israelense, sendo esta área habitada por 30.000 palestinos e aproximadamente 500 colonos israelenses. Em 1994, a rua principal do mercado, Al Shuhada Street, foi fechada por ordem militar israelense.

Dia surreal

Acordei aquele dia me sentindo vazia.

Eu estava em piloto automático. Vesti minhas roupas, um jeans e camiseta, e peguei o papel onde tinha anotado o endereço. Tomei meu café, como sempre, e fui para o ponto de ônibus. Não me lembro nada sobre o trajeto, a não ser ter mudado de ônibus umas três vezes.

Quando cheguei na base militar, olhei para dentro dos portões e pensei em como estava tentando falar com alguém lá dentro há três meses, desde a chegada da carta. Tudo o que me diziam era que eu não tinha com quem falar antes de me alistar.

Vamos rebobinar um pouco, uns dois anos antes deste dia.

Assim que cheguei em Israel, para estudar na Hebrew University, em Jerusalém, tive que ir à um escritório militar e pegar uma autorização para me inscrever no exército, como nasci em Israel era a única menina no programa preparatório para estrangeiros que precisava ir lá.

No escritório militar, um menino, mais ou menos da minha idade, de farda, depois de ouvir a minha história, e o fato de que eu queria ir para a universidade e não para o exército, me disse que eu tinha que assinar alguns papéis e pronto.

Os documentos estavam em hebraico, obviamente, e eu que havia retomado a minha leitura da língua recentemente, ainda tinha muita dificuldade em entender hebraico formal, por isso pedi a ele que me lesse o documento.

Ele me disse que a única coisa que estava escrita no documento era que eu podia voltar depois da minha formatura e renegociar meu status.

Fiquei tão aliviada, eu poderia estudar em paz e quando a hora chegasse eu seria mais velha, e estaria melhor preparada para lidar com o exército, eu tinha 19 anos na época, e era assustador falar com eles, mesmo quando o eles com quem falei era alguém que tinha 19 anos também.

De volta ao dia surreal:

Entrei na base militar, tinha um monte de gente com roupa civil também, foi aí que eu entendi que eu não era a única que tinha hora marcada aquele dia.

Eles eram um pouco mais novos que eu, completaria 21 naquele ano e eles tinham entre 17 e 18 anos. Estavam tão felizes.

Entrei num grande salão onde tínhamos que encontrar nossos nomes em uma lista. Quando encontrei, um garoto de farda me entregou aquelas placas que soldados tem com seus nomes, para que sejam identificados caso eles explodam.

Nesse momento minha pressão caiu e comecei a tremer um pouco, então fui beber água, mas o soldado atrás de mim me disse que eu tinha que seguir em frente e que na próxima sala eu poderia beber.

O que eu estava fazendo ali? Tentei perguntar a alguns soldados e a única resposta que consegui foi: você tem que terminar o alistamento e aí vai poder falar com um comandante.

Continuei andando, e recebendo coisas e assinando que eu tinha recebido elas. Coisas tipo meias, e botas, e um kit de costura, e finalmente me perguntaram meu tamanho, me deram uma farda e me disseram para entrar no vestiário e trocar de roupa.

Fiquei chocada! Entrei no vestiário – esta provavelmente foi a cena mais surreal do dia.

Quando entrei vi que era um espaço único, todas as meninas estavam se trocando e vestindo aquelas fardas, varias tiravam fotos umas das outras sorrindo.

Me troquei o mais rápido que consegui, mal tive coragem de olhar no espelho, quem era aquela menina?

Quando sai do outro lado, carregando a sacola cheia, que era comum ver soldados carregando, me encontrei no que parecia um refeitório de kibutz.

Era hora do almoço, mas eu não conseguia comer, peguei uma maça e saí pra fumar um cigarro.

Foi ai que perguntei para uma outra menina: Você está no programa “Atudai” também?

Ela disse que não. Eu não entendi.

Uns três meses antes:

Recebi uma ligação da minha tia, me dizendo que uma carta do exército chegou para mim, e me perguntando se eu queria que ela abrisse a carta. Como eu ia passar o fim de semana com ela, e não achei que fosse importante, pedi a ela que deixasse para eu abrir.

Quando li a carta no final de semana, fiquei muito confusa, dizia que eu teria que me alistar em três meses, e que eu fazia parte do Programa Atudai para estudantes universitários. Eu estava terminando meu segundo semestre em química; estava amando e estudando muito para ter boas notas, o que eu conseguia fazer somente para metade das disciplinas obrigatórias já que eu era uma das únicas no curso de química que trabalhava.

Um monte de perguntas me vieram a mente:

Eu teria que largar a faculdade?

Onde eles estavam me alistando? Eu ainda não tinha acabado meus estudos: não era pra isso acontecer!

Foi nisso que me inscrevi há dois anos? Aquele filho da mãe!  Não foi isso que ele me disse.

Fui perguntar para minha tia para ter certeza que tinha entendido corretamente.

Ela me disse que tínhamos que falar com alguém para entendermos melhor. Ela começou uma série de telefonemas que levaram a lugar nenhum a não ser a este dia sem nenhuma informação de valor.

Depois do almoço me disseram para ir à uma reunião com meu comandante, eu estava ansiosa para começar a fazer perguntas.

Quando entrei na sala já havia umas dez pessoas lá. Era uma sala bem pequena.

A comandante entrou na sala e começou a explicar o Programa Adutai:

- Vocês virão fazer um mês de treinamento básico durante as suas férias da universidade,

Comecei a chorar, bem discretamente.

- Vocês trabalharão para o exército na sua área de formação,

- Vocês servirão o exército por três anos (um a mais do que normalmente meninas servem)

- Se vocês reprovarem em qualquer matéria o exército se reserva o direito de alistar vocês imediatamente.

Nessa hora eu já estava chorando descontroladamente.

A comandante acabou sua fala, disse a todos que podiam sair. Comecei a me preparar para levantar quando ela me pediu que ficasse mais um pouco.

Ela me trouxe um copo d’água e pediu para, quando eu estivesse pronta, contar porque eu estava chorando tanto.

Enquanto eu me acalmava, percebi que ela era mais nova que eu.

Comecei a contar sobre o cara que mentiu para mim e me fez assinar o documento, como eu tinha tentado, e falhado, em falar com alguém depois de receber a carta. Contei a ela sobre o trabalho, e como o curso de química era difícil.

E finalmente eu lhe disse que eu nunca mais na vida queria tocar numa arma. E conforme essas palavras saiam da minha boca, me dei conta que se eu trabalhasse com química no exército eu iria trabalhar com todo tipo de armas e comecei a chorar de novo.

Ela me olhou nos olhos e disse que iríamos encontrar um jeito, que ela entendia, e que haviam formas de sair desta situação. Ela me disse que eu poderia encontrar um psiquiatra, para que escreva uma carta dizendo que eu era inapta para servir, ou eu poderia escrever uma carta ao exército dizendo que eu era contra tocar em armas, mas neste caso eu provavelmente iria para a cadeia, e ela disse que me ajudaria com a burocracia para arrumar isso rapidamente.

Eu estava tão grata a essa menina; foi a primeira vez no dia que me senti sã. Como é possível esses jovens pensarem que isso é normal?

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